Cem anos de amizade

16:18


Paulo Pedroso
Crônica publicada no livro Um Brinde à Vida, em comemoração aos 40 anos da ABRABE, (Associação Brasileira de bebidas)


No final dos anos 1990, eu me aventurei a participar de uma daquelas confrarias que estavam virando febre em São Paulo. Nesses encontros, que aconteciam sempre num mesmo restaurante italiano, tomei contato com alguns dos tipos clássicos que habitam o mundo do vinho, e o mais divertido foi justamente o monitor que conduzia uma apresentação de espumantes espanhóis na minha primeira noite de confrade. Ao fim da palestra, o sr. Guilherme, um septuagenário grisalho e queimado de sol que usava uma camisa polo vermelha, respondeu às últimas perguntas, desceu do tablado e, com um sorriso aberto, caminhou pelo salão em minha direção. Apresentamo-nos, e logo fiquei sabendo que ele era carioca, tinha acabado de enviuvar e era aposentado de uma grande construtora; que conhecia a baronesa Philippine de Rothschild; que era comumente confundido nos aeroportos com o ator egípcio Omar Shariff; que jogava tênis e bebia vinho todos os dias; e que sua pressão arterial era onze por sete.

Isso foi só o começo, um simples cartão de visitas. Combinamos de degustar um bom vinho juntos na semana seguinte, quando mais dois frequentadores, o engenheiro Antônio e o médico Everaldo, se juntaram a nós. Na ocasião, poderíamos tomar um vinho melhor, mais caro, e dividir a conta. O que eu não imaginava era que essa brincadeira duraria mais de catorze anos, sempre às terças. Com o tempo, o “mestre” pegou confiança na turma e resolveu esvaziar com os novos amigos de infância sua velha adega recheada de rótulos raros e caros. Paramos de frequentar o salão onde aconteciam os eventos e íamos direto para a mesa. Vez ou outra, recebíamos participantes eventuais, como esposas, filhos e amigos, e logo começamos a comemorar juntos os aniversários, quando obrigatoriamente o aniversariante do dia ou da semana colocava na roda um espumante. Nesse quesito, o professor dizia que o champanhe deveria ser bebido sempre no final. Se alguém questionasse o dogma, ele lançava imediatamente o bordão que o credenciava para dar o veredicto: “Mamãe era francesa”. Mesmo que os outros tomassem antes (o que sempre acontecia), ele apenas brindava e guardava sua parte para depois do jantar. A polêmica se intensificou quando os espumantes passaram oficialmente a fazer parte de todos os encontros, muitas vezes assumindo o papel principal.

Com a passagem do tempo e o inevitável envelhecimento, Guilherme Dutra da Fonseca, que se orgulhava entre outras coisas de ser descendente do Marechal Deodoro da Fonseca e de ter disputado uma partida de tênis em Los Angeles com a pantera Farrah Fawcett, foi ficando menos animado, até que um dia, para nossa surpresa, ele entrou no restaurante elegantemente vestido, bem penteado, perfumado e trazendo uma garrafa de champanhe nas mãos. Aproximou-se da mesa, pediu as taças e serviu solenemente a todos, inclusive a um incrédulo garçom, que foi convidado – ou melhor, convocado – a se juntar ao grupo. Na hora do brinde, sem o menor constrangimento exclamou: “Hoje papai faria cem anos!” A situação insólita nos fez rir, e a partir de então, toda vez que abríamos um espumante, procurávamos motivos inusitados para brindar a data. Podia ser o aniversário de Napoleão Bonaparte, a independência do Cazaquistão ou o Dia do Carteiro. Não fazia diferença. Afinal, ao lado de bons amigos, o tempo se dilata e tudo vira motivo de divertimento e celebração


P.Pedroso (2014)









You Might Also Like

0 comentários

Popular Posts