Quem é vivo aparece na Consoleta

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Por Paulo Pedroso para a SAX Magazine (2010)

Em 2002, quando o restaurateur Benny Novak e seu sócio Renato Ades, abriram um Bistrô no numero 450 da rua Mato Grosso, talvez não imaginassem que estavam dando o primeiro passo para a revitalização de uma área até então considerada perigosa. O local, que fica nos arredores do Cemitério da Consolação, já foi ponto de prostituição e até de desova de lixo, segundo antigos moradores. Pra completar, o imóvel era considerado micado por ter sediado uma padaria do francês Olivier Anquier que não vingou no local. Mas, o bom faro da dupla se confirmou em pouco tempo. Em menos de uma década a região virou referência de roteiro gastronômico de charme na cidade.


Foi do mesmo modo que há pouco mais de 40 anos, em Buenos Aires, o lendário chef de cozinha e empresário argentino Gato Dumas, junto com outros pioneiros, abriram suas casas noturnas e restaurantes ao lado do cemitério da Recoleta, famoso por abrigar os restos mortais de Evita Perón. A iniciativa converteu a área na famosa Recoleta Porteña, que possui algumas casas célebres como o La Biela, que era freqüentado algumas décadas atrás por pilotos e amantes de corridas de automóveis. O nome deriva de La Biela fundida, que foi o apelido dado ao então pequeno bar de esquina por um dos habitués cujo carro quebrou na porta do estabelecimento. Recentemente a casa recebeu da Legislatura da Cidade de Buenos Aires uma placa de Lugar de Interesse Cultural. É um típico Café Porteño, e a decoração é cheia de peças de carros de corrida, troféus e fotos de pilotos como Fangio e Regazzoni. Há poucos metros dali fica o Clark’s, que é uma das casas pioneiras fundadas por Gato Dumas. É um restaurante classudo, com decoração inspirada em motivos de caça, e lá podemos degustar as carnes argentinas em grande estilo. Diz a lenda que esse era um dos restaurantes preferidos do escritor Jorge Luis Borges.


Na comparação inevitável entre as duas regiões, a nossa ganhou o apelido de Consoleta. O caderno Divirta-se do Jornal da Tarde reivindica a autoria do epíteto publicado pela primeira vez em fevereiro de 2008 Apesar dos hermanos argentinos terem começado a povoar o entorno da Recoleta algumas décadas antes, a nossa Consoleta tem a sua originalidade. O cemitério da Consolação, com seus mais de 150 nos de existência e seus túmulos com status de obras de arte, é bonito e cheio de "moradores ilustres". A isso somamos a atmosfera cool do bairro de Higienópolis e o resultado é um lugar em que os habitantes do local não só aprovam como alguns deles se engajaram em movimentos para melhorar cada vez mais a região.




O empresário Teodoro Eggers nasceu e cresceu no Bairro. A sua atuação na comunidade vai bem além dos limites do seu estabelecimento, o bar Higienópolis, que ele fundou dois anos atrás. Entusiasta assumido da Consoleta, ele está constantemente em contato com a administração do cemitério e com a sub-prefeitura lutando por melhorias na área. Além disso, ele faz a conservação da praça Vitor Del Mazo que fica em frente ao bar e até colaborou para que a administração do cemitério autorizasse a execução de grafites em seus muros.

Por tudo isso, Teodoro é quase um prefeito informal do pedaço. Na parede do seu bar, pode-se ver um gentil diploma que ele recebeu do então sub-prefeito Andrea Matarazzo como reconhecimento pelo seu trabalho na comunidade. O local, muito agradável, mantém o espírito de bar de bairro e serve petiscos, cervejas artesanais e até alguns pratos de bistrô.



Não é só de charme que vive a Consoleta, os restaurantes instalados por lá oferecem gastronomia variada e de primeiríssima qualidade. Pioneiro da região, o elegante Ici Bistrô, agora ocupa um novo endereço a 200 metros do original, na rua Pará 36. A casa, que já foi eleita duas vezes pela revista veja como o melhor restaurante francês de São Paulo, oferece o que há de melhor na cozinha francesa clássica, tudo executado com extrema competência. e frescor pelo premiado chef Benny Novak. Na esteira do sucesso do Ici, os sócios Benny e Renato já emplacaram duas novas casas igualmente bem sucedidas, uma delas no próprio bairro de Higienópolis chamada Dinner 210 que fica na mesma rua Pará no numero 210.

Ao lado do Ici, na esquina da Pará com a Mato Grosso, a França ganha um ar mais despojado na Mercearia do Francês. A casa que pode ser descrita como um misto de bar e restaurante possui uma área externa muito agradável. Nas mesas do terraço sempre lotadas pode-se degustar mini-croques, mini-quiches, bolinhos de mandioca com carne-seca e pastéis, ou seja, é Brasil e França no mesmo lugar. Tem também clássicos de Bistrô como cassoulet, coxa de pato confit e tarte tatin, além de sanduiches e omeletes. A decoração da casa que mistura Torre Eiffel com Viaduto do Chá não deixa dúvidas, o romance entre os dois países é assumido.

Logo em frente, do outro lado da rua, pode-se tomar um Café na tradicional doceria Dulca que está instalada lá também. Aos sábados à tarde é programa obrigatório de quem está passeando a pé pela área, formando inclusive filas de espera para sentar na sua agradável área externa.


Na mesma rua Mato Grosso, o Antonieta é o mais Italiano dos restaurantes da Consoleta. O chef e proprietário da casa Mario Martini trabalhou em alguns restaurantes nos Estados Unidos e a primeira casa que ele montou no Brasil foi o Genova em Pinheiros, que nasceu de um grupo de amigos que cozinhavam há muitos anos juntos, por pura paixão. Atualmente ele comanda o Antonieta e ganhou elogios do saudoso Saul Galvão, o que para nós já é um grande cartão de visitas. Ele me disse que pratica uma gastronomia italiana clássica, mas que procura sempre renovar e criar pratos que respeitem a tradição sem perder o seu toque pessoal. Do pequeno salão com apenas dez mesas, se pode avistar a cozinha totalmente aberta, ver o chef pilotando o fogão e até interagir com ele. 


Outra casa que ajudou a consolidar a imagem da região, é o La Frontera. O restaurante fica na rua Coronel José Eusébio, que é a travessa da Consolação que contorna a parte de cima do cemitério, esquina com uma pequena viela. À noite as suas janelas longas exibem o ambiente iluminado à luz de velas conferindo um charme especial ao local. Lá dentro, uma eclética lista de freqüentadores que vai do ator cult Paulo César Peréio ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso completa a atmosfera cosmopolita do lugar. A proprietária, a argentina Ana Maria Massochi, que também é dona do Martin Fierro, na Vila Madalena, mantém uma equipe bastante competente na cozinha e no salão. O cardápio é bem variado, com presença de clássicos argentinos como Ojo de Bife e criações mais autorais como a paleta de leitão com farofa doce. Nos peixes, a Garoupa de Cabo Frio é o hit da casa.


Instalado num imóvel quase centenário, que segundo uma lenda corrente no Bairro, abrigava uma “casa de tolerância” na década de 20 do século passado, o Anita chama a atenção pela janela quase na altura do chão que ostenta o nome da casa em letras de néon meio art déco. Da rua pode se observar o bar que fica num piso abaixo. A casa, que é dos mesmos donos do bar São Cristóvão da Vila Madalena, mantém no cardápio um galeto assado na famosa “televisão” acompanhado de farofa, batata-bolinha com alecrim e vinagrete, que segundo a Chef Julia Guimarães é um sucesso. Outro clássico é o Filé Oswaldo Aranha que é preparado no corte Prime Rib. Julia conta que manteve a idéia original dos antigos proprietários da casa de praticar uma cozinha “afetiva”, ou seja, oferecer pratos que favoreçam lembranças daqueles almoços em família como filet a parmegiana e frango com creme de milho. A chef faz questão de enfatizar que os frangos são todos orgânicos. A mistura de ambiente sofisticado com alma de boteco parece que faz parte do espírito da Vila Madalena que os novos donos levaram pra lá.

A novidade da área é o Becco 388. De volta ao Brasil depois de viver nos EUA por sete anos, o casal de chefs André Barone e Daphne Glidden escolheu a rua Mato Grosso para montar uma casa que, segundo eles, recriasse um ambiente bem nova-iorquino. A decoração com cores quentes, o bar na entrada e o pequeno salão realmente evocam a atmosfera dos restaurantes do East Village. André, que trabalhou em algumas casas importantes de Nova Iorque, oferece uma cozinha bem exuberante e basicamente italiana. Tem pra todo mundo. Massas, carnes e risotos, tudo com cara de comida de verdade. O cardápio oferece até uma entrada meio retrô, o velho e bom coquetel de camarão, só que com uma apresentação mais moderna. A casa parece que pegou. Estive lá numa quarta-feira à noite de frio glacial e estava lotada.

Devido ao sucesso que a micro-região já alcançou em pouco tempo, muito em breve outros restaurantes bares e cafés deverão se instalar nos pequenos sobrados que circundam o cemitério, boa parte deles construídos entre as décadas de 40 e 50 do século XX. O problema é que os proprietários dos imóveis, atentos ao mercado imobiliário atual da cidade e à fama da região, querem elevar os preços dos aluguéis à altura dos túmulos dos ricaços do terreno em frente.

E para os que quiserem enriquecer o programa com um pouco de cultura e história de São Paulo, o cemitério da consolação também oferece visitas programadas aos túmulos ilustres, nos mesmos moldes do famoso Pere Lachaise de Paris. Pelas suas ruelas podemos contemplar boa parte da história artística, cultural e industrial da cidade de São Paulo. O trio modernista Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, e Mario de Andrade e o ex-presidente Campos Salles são apenas são apenas alguns dos importantes nomes que assinam as lápides mais visitadas. No campo da chamada arte tumular, estão lá, por exemplo, obras premiadas do escultor Victor Brecheret, como O Sepultamento, que fica no túmulo da mecenas Olívia Guedes Penteado.



Por fim, toda essa comparação entre Recoleta e Consoleta pode até ser entendida como uma homenagem. Afinal, todos sabemos que a velha rivalidade entre Brasil e Argentina revela uma indisfarçável admiração mútua. Temos que admitir que eles batem um bolão no futebol, no cinema e na literatura. Na gastronomia então, nem é preciso dizer nada, é só contar o numero de restaurantes argentinos que se instalaram por aqui nos últimos anos. As suas excelentes carnes caíram definitivamente no gosto dos brasileiros.

Tanto lá como aqui, o cemitério é personagem importante e contribui com o micro-clima que constrói a aura de atratividade do lugar. Os mais filosóficos podem aproveitar a sensação para refletir sobre a transitoriedade da vida. Porém, enquanto nós não nos instalarmos definitivamente nesse, digamos, condomínio fechado em frente, podemos aproveitar os nossos dias terrenos para degustar as maravilhas gastronômicas da nossa Consoleta.


Bon Appétit, só que não. 
Hoje, cinco anos depois da publicação dessa matéria na Revista SAX, alguns desses restaurantes passaram para o lado de dentro do cemitério, infelizmente. Fica o registro da matéria 
P.P. 2015

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