A Nouvelle Vague do Café (1)

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Paris é, sem dúvida nenhuma, a cidade dos Cafés. Alguns deles se tornaram clássicos , não só pela longevidade, mas principalmente pelo calibre de seus freqüentadores. O filósofo Voltaire refrescava seus pensamentos iluministas no Café Le Procope, que funciona desde o século XVII na Rue de L’Ancienne Cómedie, e preserva sua mesa até hoje no salão superior. Anos mais tarde, os revolucionários Danton, Robespierre e companhia, provavelmente decidiam que cabeças iam botar pra rolar, sentados nesse mesmo Café. Na década de 20 do século passado, o escritor Ernest Hemingway e seus amigos gastavam horas passando idéias para o papel nas mesas dos Cafés Les Deaux Magots e De la Paix. Todos esses lugares foram praticamente segunda casa de gente como Henry Miller, Albert Camus e André Malreaux, sem falar no célebre casal Jean Paul Sartre e Simone de Bouvoir, que entre um café e outro, fumava e brigava publicamente sob os olhos da rapaziada cabeça da Sorbonne. O cenário era quase sempre o Café de Flore, no coração da Rive Gauche.

Mas, o que dizer da bebida que dá nome a essas autênticas instituições francesas. Será que ela evoluiu na mesma velocidade do pensamento de seus bebedores? Parece que não, apesar de ter contado com alguns garotos propaganda de peso ao longo da história, como o escritor Honoré de Balzac e o compositor Serge Gainsbourg, que viviam sob muita cafeína correndo nas veias. O fato é que o líquido servido nas xícaras desses lugares é fornecido por grandes empresas que praticamente cobrem quase todos os cafés e restaurantes de Paris. Algumas distribuidoras imprimem sua marca em vários insumos e o café é um deles.  Atualmente com o avanço de concorrentes globais, todos tentam revestir o seu produto de respeitabilidade, promovendo cursos e distribuindo prêmios. Embora os novos artesãos do café façam coro contra a voracidade dos gigantes da indústria, arrisco dizer que marcas como Illy e Nespresso tem promovido uma pequena evolução na percepção da bebida com suas maquinas caseiras de extração e especificações de origem de produto. 

Talvez os turistas de hoje em dia, assim como os pensadores do passado, tenham coisa mais importante pra fazer do que se preocupar com a qualidade de um simples cafezinho. Mas esse definitivamente não é o nosso caso, pois nossos sentidos estão voltados para o que vai dentro da xícara. Além do mais, estamos em Paris, e o palco da Nouvelle Cuisine, da Nouvelle Vague e do New Look, parece ter finalmente acendido para uma nova e discreta revolução. Há um aroma de café fresco pairando no ar da cidade luz.

Poesia e Café 

Aos 22 anos, a guatemalteca Gloria Montenegro Chirouze veio para Paris estudar e se instalou no quarto andar de um edificio na Rua D'Hotel de Ville, bem em frente ao rio Senna. Atualmente, na parte térrea, bem ao lado de seu antigo endereço, podem-se provar os melhores cafés do mundo na La Caféothèque, ou melhor, academia do café, como ela gosta de chamar a casa que fundou em 2005. Algumas coisas importantes definiram a transformação da estudante na maior promotora da cultura do café na frança, como por exemplo, o casamento com um francês em 1976. Mas foi a sua nomeação como embaixadora da Guatemala em 1996, que realmente a despertou para uma nova causa: divulgar o que o seu país tem de melhor; o café. E foi o que ela fez. No final da jornada, recebeu a Légion d'Honneur do governo francês e imediatamente fundou uma associação que chamou de Connaissance du Café, um centro de estudo da Caféologia, a ciência do café. Diz ela: “Eu me comprometi com o café e durante cinco anos mantive só a Associação. Mas, cada vez mais pessoas me perguntavam onde poderiam tomar esses cafés maravilhosos e então decidi criar a Caféotèque em 2005. É uma academia que serve cafés do mundo todo. No menu há 30 variedades diferentes que você pode degustar todos os dias. Nada de assemblage. Somente cafés de fazenda, pois eu quero que o público conheça cada produtor”. É claro que existe uma boa dose de purismo no fato de não haver blends na casa. Afinal, sabemos que grãos de qualidade bem combinados produzem resultados de extrema delicadeza e complexidade. Ela sabe disso, mas há um ideal por trás de cada xícara sua, que vai além de apenas promover os produtores. “Estou fazendo uma campanha mundial para que as sacas de café pesem 23 kg e não 60 como se usa. São 100 milhões de homens e mulheres no mundo carregando sacas e isso é desumano. Nós adotamos desde o principio essa saca de 23 kg”.

Ironicamente, o primeiro espaço onde ela promoveu as degustações da academia foi exatamente o Café Le Procope, que por sinal não adotou o seu café na casa.  Ela entende isso e afirma que apesar de os franceses já terem um paladar analítico e conhecerem o vocabulário da enologia, não é tão fácil introduzir a ciência do café. Ainda assim, ela oferece fichas de degustação aos clientes que quiserem se aprofundar um pouco mais.  Sobre o seu estilo de torra, ela usa uma linguagem mais técnica: “Torrefação a ponto, até o segundo crack. O primeiro revela o perfil para subir ou descer a temperatura. Um pouco mais tostado que em Copenhagem. Café com retrogosto e complexidade.” Traduzindo: os chamados cracks são momentos específicos que ocorrem durante a torra, em que o grão se expande devido à pressão de seus vapores internos, produzindo estalos parecidos com pipoca na panela. Já o estilo nórdico a que ela se refere pressupõe uma bebida com acidez mais pronunciada, teoricamente produzida com torra mais leve. Mas isso não é tão simples, pois em cafés de alta qualidade não se fala em torra clara ou escura, e sim em perfil, um processo complexo que envolve variáveis como tempo, curva de temperatura e controle de fluxo de ar dentro da máquina. Os seus cursos são frequentados por jovens de várias partes do mundo que ajudam a criar o ambiente cosmopolita das novas cafeterias da cidade. Gloria tem uma fala apaixonada e contagiante, e me mostra com orgulho o livro do superchef Alain Ducasse, Paris Je T’aime, onde ele cita poeticamente a Caféothèque como um de seus endereços preferidos da cidade; " Aqui se fala de grand crus, de terroirs, de toques florais e aromas de mel. Aqui todos são puristas e se orgulham disso. A Caféothèque é uma casa de histórias. Aqui, nós nos deixamos iniciar." A.D.

Novas idéias para um velho grão

A nova geração de baristas não tem compromisso algum com o passado dos tradicionais cafés franceses. Suas casas em nada lembram os salões que celebrizaram a Paris de outros tempos. São lugares pequenos, modernos e hiperconectados. Ainda assim, alguma coisa remete aos velhos tempos; na tradição dos eventos culturais que sempre chacoalharam a cidade, eles criaram um encontro mensal denominado Frog Fight, onde os baristas promovem competições independentes, apresentam seus blends, seus perfis de torra e sugerem diferentes formas de extração da bebida. O movimento, cuja finalidade segundo seu fundador, Thomas Lehoux, é aumentar o conhecimento dos verdadeiros amantes do café, cresceu e rendeu até matéria no New York Times. Thomas, que trabalhou na Caféothèque, foi barista vice-campeão francês em 2011 e é sócio do Ten Belles Café, fundado a menos de um ano no 10th arrondissement, uma região que concentra bares, butiques descoladas e galerias de arte ao redor do Canal Saint-Martin. Segundo ele, os franceses estão muito longe de saber o que é um bom café: “O fato de a França ser uns pais de tradição gastronômica cria a ilusão de que o café pode ser incluído nesse pacote, o que não é verdade”. Mas, as filas que se formam diariamente no Ten Belles, mostram que pelo menos os jovens estão gostando da novidade. E a tendência que se estabelece é a bebida preparada no Coador V60 da Hario e na Aeropress, o método criado recentemente nos Estados Unidos de extração por pressão de ar.

Quem precisa de David Lynch?

Recentemente um jornalista norte-americano noticiou que o Café Telescope, localizado no elegante 1th arrondisement, ao lado do Palais Royal, tinha entre seus sócios o barista particular do cineasta David Lynch. A notícia replicou em vários blogs de gastronomia e naturalmente o lugar ganhou uma aura de modernidade. Pelo menos a longa distância. De perto a história é outra, pois o proprietário Nicolas Clerkc, que dá um duro danado atrás do balcão, faz questão de desmistificar a lenda hollywodiana dizendo que o seu agora ex-sócio, David Flynn, esteve realmente duas vezes com Lynch em eventos de café e nada mais que isso. Clerc serve cafés de alta qualidade da torrefadora britânica Has Bean Coffee para uma clientela hype e animada que parece ter acabado de sair do último desfile de Karl Lagerfeld. Essa sim pode agregar valor real ao seu negócio. A propósito, o diretor e meditador transcedental David Lynch tem uma marca de café com seu nome e se declara consumidor compulsivo de vinte xícaras diárias da bebida. Se alguém se aventurar a ser seu barista particular certamente vai faturar muita hora extra.

Em busca de um novo estilo

Se existe um artista na cadeia de produção do café, talvez o que mais se aproxime da ideia seja o mestre do torra. É ele, que com uma máquina na mão e uma ideia na cabeça pode realmente fazer com que grãos de qualidade explodam numa profusão de aromas e sabores na nossa xícara. Em Paris, ainda são poucas as cafeterias que tem torrefação própria. Além da Caféothèque, a Coutume Café, que fica na região dos Invalides, vem apresentando um trabalho de reconhecida competência. Seu fundador, Antoine Netien, foi retratado no Jornal Le Monde, ao lado de Hippolyte Courty, do L’Arbre a Café e  de Aleaumi Paturne, do Lomi Café, num artigo que exalta a nova safra de torrefadores parisienses como criadores de uma bebida de exceção, e  pontifica o trio como “Sommeliers do Café”.
Lomi é o apelido de infância do francês Aleaumi Paturle. Ele me disse que começou a trabalhar com cafés em 2002, quando morava em São Diego na California. Ao retornar à França, montou seu primeiro negócio, uma franquia do Alto Café que manteve por cinco anos até decidir se especializar em torrefação e criar o Lomi três anos atrás. Seu estilo se assemelha ao de Glória, da Caféothèque, quanto ao ponto de torra, mas diferentemente dela, gosta de criar blends com os melhores grãos que adquire de fazendas que costuma visitar pessoalmente pelo mundo. Do Brasil, ele diz comprar bons cafés, principalmente da Fazenda Da Terra. Sobre o futuro de seu negócio, ele acredita que já se pode se falar em tendência de um novo gosto, porém ainda não dá pra pensar em mercado com alta escala de consumo.

A Tiffany dos Cafés

Uma das boutiques de café recentemente abertas em Paris é a L’Arbre a Café, criada pelo ex-crítico de gastronomia e vinhos, Hippolyte Courty . Ele me disse que nem ao menos gostava de beber café, até o dia que um editor pediu que ele escrevesse um livro sobre degustação de vinhos e incluísse um capítulo sobre café. “Eu aceitei o desafio mais por divertimento e curiosidade. Procurei aprender um pouco na França e na Itália sobre o assunto. Porém, quando finalmente degustei um café singular e sem defeito, posso dizer que tive uma revelação. Pensei, Oh Deus, o café existe e eu quero fazer o meu. Posso dizer que minha entrada no mundo do café começou assim como a paixão de Aurelien por Berenice. A primeira vez ele a viu, achou-a francamente feia”. Como em bom francês aculturado, ele cita o escritor e poeta dadaísta Luis Aragon, que não por acaso era mais um célebre frequentador do Café de Flore. De volta para o futuro, Hippolyte diz que começou a estudar a coisa pra valer e logo desenvolveu uma pequena torrefação voltada no início para atender somente amigos e alguns chefs estrelados que fazem parte do grupo conhecido como La Grand Table. A nata da gastronomia francesa. Sua proposta é trabalhar somente com cafés raros, biodinâmicos e comprados diretamente dos produtores. Agora com a abertura da loja, o publico pode ter acesso aos seus finos grãos, que ele chama de grand crus, importando o termo da vinicultura.  
Apesar da nova cena cafeeira de Paris ainda ser modesta diante de cidades como Copenhagem, que abriga as cultuadas Coffee Colective e State Coffee, e Londres, que já coleciona um grande numero de torrefações de excelência como a Square Miles, do barista campeão mundial James Hoffman, a lista de lugares onde se pode provar cafés de qualidade na cidade vem aumentando rapidamente nos últimos anos. São jovens baristas, muitos deles formados na Caféothéque, que abrem seu próprio negócio com ajuda de investidores. E a novidade está ganhando as páginas da mídia especializada no mundo inteiro. Apresentar um café melhor que a velha guarda parece que eles já conseguiram. Sobreviver a eles é outra história.

A nossa barista voadora

O mundo do vinho cunhou o termo flying winemakers, para designar os enólogos que viajam emprestando seu talento para produtores de diferentes paises que querem modernizar o seu produto. O café, apesar de ser a bebida mais consumida do planeta depois da água, ainda não chegou a ponto de qualificar os seus craques dessa forma. Porém, o chamado mercado de cafés de alta qualidade está se globalizando rapidamente e alguns profissionais já se destacam e ganham reconhecimento internacional. Os grãos brasileiros já são velhos conhecidos no mundo todo, e agora os nossos baristas também estão colocando o pé na estrada. Em Paris, encontrei a mineira Daniela Capuano, que já foi barista instrutora de cursos na Caféothèque e atualmente atua como representante da BSCA(Brazil Specialty Coffee Association) na Europa. Apesar de muito jovem, diz que valeu a pena ter largado a faculdade de design gráfico para se dedicar à profissão que entrou por acaso e poucos anos depois conquistou o campeonato mineiro de baristas. Não tardou pra ela fazer as malas e começar o seu périplo movido a cafeína: “Em 2010, fui como voluntária pra Londres participar do WBC(World Barist Cup). Lá, ajudei os baristas brasileiros que estavam competindo, Yara Castanho, que atualmente vive na Dinamarca e trabalha no Estate Coffee, e Marco de la Roche, que além de barista é tricampeão brasileiro de mixologia. Passei alguns meses  entre Londres e Dublin e tive a oportunidade de trabalhar com o brasileiro Fabio Ferreira , no Flat Cap Carts e também com o Gwilyn Davies no Prufrock Coffees. Quando voltei pro Brasil, fui trabalhar no Suplicy Cafés em São Paulo, que para mim é uma verdadeira escola de baristas”. Logo em seguida fui convidada pela BSCA para fazer parte da equipe que iria trabalhar na SCAA(Specialty Coffee Association of America)  em Houston, ano em que o Brasil foi o país homenageado. Foi um trabalho maravilhoso. Depois de Houston e ainda trabalhando no Suplicy, fui para Maastrich, na Holanda, onde conheci o torrefador francês Hippolyte Courty, que me disse que a França estava precisando de bons baristas e isso poderia ser uma grande experiência pra mim. E aqui estou eu”. Sobre a nova onda dos Cafés parisienses ela afirma que a mudança começou de uns três ou quatro anos pra cá. Quando chegou, há menos de dois anos, só existiam o Caféothéque e o Coutume. Ela continua firme no seu trabalho de divulgação do Café Brasileiro pelo mundo junto  a BSCA. Quando cheguei em Paris, estava de malas prontas para ir mais uma vez a Houston, no Texas. Por fim, perguntada se pretende ficar de vez na cidade, parece que não há romantismo. Nada de Paris toujours Paris. O futuro ao café pertence. Por sinal, em julho próximo ela deve desembarcar em  São Paulo para fazer um curso de torra com Isabela Raposeiras no Coffee Lab


P.P. 2013

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