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The Perfect Shoe

08:08


Em São Paulo, apesar do avanço das grandes marcas e do chamado fast fashion, ainda é possível encomendar um par de sapatos feito à mão. Porém, a tarefa exige uma dose de paciência bem à moda antiga, que geralmente começa com uma conversa cordial que antecede o momento em que o mestre sapateiro apresenta alguns exemplares, normalmente variações de clássicos ingleses e italianos. Logo em seguida ele tira medidas, faz anotações em pequenos cadernos e estuda como conferir elegância aos pés, corrigindo imperfeições, alongando, e às vezes até usando truques para elevar a altura e consequentemente a autoestima de alguns clientes com saltos embutidos na estrutura do calçado. Por fim, ainda é preciso definir o material entre cortes de couro franceses ou italianos, o que, dependendo da escolha, pode aumentar dramaticamente o preço final do produto. Vinte a trinta dias depois a obra está pronta e você já pode andar pelo mundo mais confiante e realizado.

Mario da Costa Carneiro e Renzo Nalon são decanos dessa atividade que teve seus dias de gloria em meados do século passado, antes da expansão da indústria calçadista no interior do estado. Visitá-los, é viajar um pouco na história de uma São Paulo aristocrática que já não existe mais, contada através de velhas formas de madeira, desenhos em folhas amareladas e fotos em preto e branco.

Nascido em Portugal, Mario chegou ao Brasil aos vinte e um anos de idade e criou a sapataria Carneiro, no centro da capital paulista. Porém, pouco tempo depois recebeu um convite de Gino Busso, para gerenciar a sua pequena fábrica que já existia desde 1915. Com o tempo assumiu a direção da casa e após a morte do fundador, fez um acordo com a família e assumiu o negócio. Reconhecido até pelos seus pares como o melhor artesão do ramo, Mario é pragmático do alto de seus 83 anos, mais de 60 dedicados à sapataria de luxo. Perguntado sobre quem são seus clientes, ele resume: “pessoas que tem dinheiro”. Cuidadoso ao falar sobre o assunto, ele cita apenas alguns nomes como Janio Quadros, Antonio Carlos Magalhães e Clodovil. Os três frequentavam pessoalmente o atelier e Mario os atendia e tirava as medidas. O estilista possuía mais de cinquenta pares, muitos criados por ele, que segundo Mario, foi um grande amigo e divulgador de seu trabalho. A Busso funciona na rua Major Sertório, região central, e hoje em dia produz uma media de cinquenta pares por mês com custo a partir de R$ 1.700,00

Não muito longe do centro, na Barra Funda, o descendente de Italianos Renzo Nalon, toca a Pellegrini Calçados. Fundada pelo seu tio Vicenzo Pellegrini em 1902, a empresa atravessou altos e baixos, abriu e fechou lojas, chegou à quase falência, sobreviveu e atingiu a emblemática marca de mais de um século de existência fazendo sapatos artesanais de alta qualidade. Ativo aos 76 anos, Renzo cuida pessoalmente de tudo, tira medidas, atende telefone e ainda tem energia para praguejar contra a proliferação do uso do tênis na vida social. É ele o responsável pelos passos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, seu cliente há décadas, e de outros tucanos que seguiram o chefe e também utilizam o seu serviço. Entre centenas de caixas de formas acomodadas numa sala climatizada podemos encontrar esculturas dos pés célebres do Dr Sócrates e de toda a comissão técnica que disputou as copas de 1982 e 1986. Atualmente ele fabrica aproximadamente trinta pares por mês ao preço médio de R$ 1500.00

Apesar de todo o esforço, ambos, Mario e Renzo parecem não ter herdeiros para seguir com o negócio. Seus filhos não se interessaram. Eles afirmam em uníssono que não há estímulo por parte de nenhuma entidade para que jovens aprendam esse tipo de trabalho. Ainda assim, Renzo diz que está estudando com a FIESP, entidade onde atende vários clientes, um modelo de fundação para ensinar a profissão aos jovens e preservar o nome da Pellegrini no futuro.
Problemas de sucessão não preocuparam por muito tempo o italiano Altemio Spinelli. Quando percebeu que seus filhos iriam seguir caminhos diferentes dos seus, ele encerrou o negócio no final dos anos 90 sem pensar duas vezes. Muito cedo, segundo seus clientes que insistem até hoje para que ele volte. Ícone da sapataria de luxo durante quase três décadas, ele chegou ao Brasil aos 22 anos no final dos anos 50 e dez anos depois já tinha lojas na Oscar Freire e no Shopping Iguatemi. Calçou vários presidentes e diz que Médici o convidava para tomar cafezinho e encomendar sapatos falando em italiano. Além disso, reivindica pra si a propagação do item que se tornou obrigatório no figurino da rapaziada que frequentava a Rua Augusta na década de 70. “Aqui ninguém usava mocassins naquela época, então eu comecei a fazer uns modelos que eram clássicos na Itália, com cores mais extravagantes. Virou uma febre e eu quase não dava conta de tantos pedidos, trabalhava dia e noite”. Outro Italiano que também fez fama vestindo os pés dessa geração foi Adriano Crivello, já falecido, que mantinha uma pequena sapataria artesanal na Alameda Itú, nos Jardins. Nos últimos anos, Altemio voltou ao negócio, mas produzindo apenas palmilhas ortopédicas. E pra não perder a mão, diz que como viaja frequentemente aos estados Unidos para visitar os filhos, dá uma forcinha para a nora Tania Spinelli, que fabrica e comercializa uma linha de sapatos femininos com seu próprio nome na loja de departamentos Saks Fifth Avenue, em Nova Iorque.
Ao contrario do Brasil, o Japão parece estar vivendo uma era dourada do sapato bespoke, que é como os ingleses chamam o produto feito sob medida. São jovens talentosos que fazem estágios na Itália e na Inglaterra e depois partem para o trabalho solo em grandes centros como Tóquio e Osaka. Alguns já estão elevando suas criações ao status de obra de arte e conquistando clientes do velho continente. Na Europa, além dos lendários artesãos, marcas como Berluti, do grupo LVMH, também estão oferecendo o serviço de calçados individualizados a preços que podem chegar a cinco mil euros o par para clientes que não querem ser vistos por ai vestindo pret-à-porter.

Voltando a nossa dura realidade, pelo menos duas empresas por aqui encontraram uma forma de comercio intermediária entre o sapato feito em série e o personalizado. A Pacco Calçados, no Itaim Bibi, e a Giannini, na Vila Nova Conceição, mantém suas lojas com modelos próprios, incluindo linha feminina, mas também disponibilizam opções de customização como escolha de cores e materiais nobres que garantem longa durabilidade, além das graduações de meio ponto no tamanho. “Não há exatamente uma forma específica para cada um, mas existem várias que podem ser adequadas ao pé do cliente”, diz Adriano Tourino, 39 anos, descendente de espanhóis, que faz parte da terceira geração da Pacco, empresa com meio século no ramo e que deixou de fazer modelos sob medida há sete anos. É ele quem fica atento a novas tendências de design e matérias primas enquanto seu pai, o Pacco, toca a pequena fábrica. Ele alega carência de profissionais como modelistas e formeiros, e o longo tempo gasto com a produção de peças únicas para a mudança. No modelo de negócio atual ele consegue vender uma média de quinhentos pares por mês com preços que podem variar de R$ 500,00 até R$ 1000,00, dependendo do material utilizado.

Já João Giannini, proprietário da loja e da fábrica que leva seu sobrenome, além de comercializar sua própria coleção, é o homem por trás de várias marcas de sapatos finos como Capo D'Arte e Sergio K, entre outras, que terceirizam a manufatura com ele. Atualmente, alguns alfaiates como João Camargo, Fabrizio Silva e Vasco Vasconcellos também estão incluindo sapatos no seu blend de serviços e se utilizam de seu conhecimento de mais de 50 anos para execução das peças. Fabrizio, que aprendeu o ofício trabalhando com Ricardo Almeida desenha modelos exclusivos para seus clientes no seu atelier da Vila Nova Conceição e deixa a materialização a cargo de João. Ele se diz otimista quanto a um renascimento das pequenas oficinas artesanais de vestuário, “A alfaiataria está renascendo e já tem uma moçada nova querendo aprender a profissão, que tradicionalmente é exercida por velhos senhores”. Quem sabe a nova paixão dos japoneses por sapatos assinados por verdadeiros artistas aponte para um mundo pós-massificação. O tempo dirá.



P.P. Valor Econômico 2013

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