A Nouvelle Vague do Café (2)
07:56
Um grão de café flerta com a
morte pelo menos três vezes antes de chegar à nossa xícara. A primeira no pós-colheita,
quando ocorrem fermentações indesejadas durante o processo de secagem. A
segunda na torra, que em geral é excessiva e destrói propriedades naturais como
doçura e frescor. E a terceira na extração, quando máquinas desreguladas e
profissionais mal treinados podem enterrar de vez as qualidades da bebida. Essas
imagens didáticas das mortes possíveis do café são usadas pelo cafeicultor e
educador mineiro Bruno Souza para enfatizar a importância de todo o processo a
quem pretende entregar excelência. Esse conhecimento,
até pouco tempo atrás restrito a profissionais, virou tema de discussões
apaixonadas. É o que estudiosos chamam de “a terceira onda do café”. A bebida, que
tem como característica primordial a capacidade reanimadora, e deu nome a
estabelecimentos onde funcionava como elo de relacionamentos, hoje passou a despertar
tamanho interesse nos consumidores, que a paixão muitas vezes beira o
fetichismo. Não é raro encontrar em cafeterias jovens ostentando tatuagens de
xícaras, cafezais e até moléculas de café. O ato simples de tomar um cafezinho
ficou para trás. O consumidor quer saber a procedência, o tipo de grão e que sensação
a experiência irá lhe proporcionar. O fenômeno é mundial,
e foi impulsionado pelo aparecimento de redes de cafeterias que passaram a
utilizar grãos mais nobres, da espécie arábica, e a oferecer, além de maior variedade,
ambientes confortáveis que favorecem o convívio e a socialização.
O salto qualitativo fez
surgir uma nova classificação, o Café Especial, ou Specialty Coffee, nos Estados
Unidos, que vai além da simples gourmetização e se tornou alvo de produtores do
mundo todo. Porem, para obter esse novo status que aos poucos se torna uma
exigência de consumidores e torrefadores, não basta vencer os inimigos
descritos por Bruno Souza. Deve-se cumprir uma infinidade de requisitos que vão
desde origens e características físicas dos grãos, como tamanho e cor, até fatores
ambientais, como produção e relação com a mão de obra. Fora isso, é preciso se
submeter a sistemas internacionais de pontuação, concursos, e, quem sabe, ser
mencionado em publicações especializadas como Roast Magazine, Barista Magazine
e Coffee Review.
Souza faz parte de
uma família do cerrado mineiro envolvida com cafeicultura há quatro gerações e
é um dos responsáveis pela recuperação da imagem do café brasileiro no
exterior. Em 2002, viajou para os EUA para conhecer o mercado americano. E
acabou contribuindo para que torrefações mais famosas como a Intelligentsia, de
Chicago, aumentassem significativamente seu consumo de grãos brasileiros. Quando
retornou ao Brasil, em 2011, criou a Academia do Café, em Belo Horizonte, um
espaço com tecnologia de ponta para formação técnica com certificação da SCAA
(Specialty Coffee Association of America).
Na Califórnia, numa
feira da indústria cafeeira, Bruno conheceu outro brasileiro que teria um papel
importante para a mudança de hábitos no consumo do café. Embora sua família
estivesse envolvida no ramo cafeeiro desde o século XIX, Marco Suplicy só
estreou na cena paulistana em 2003 quando abriu as portas da cafeteria que leva
seu sobrenome. Adotou parâmetros até então incomuns no Brasil, como foco na
qualidade da bebida, treinamento do baristas e torra da matéria prima com
sistema on demand. Além disso,
propagou o conceito de micro-lotes, que são pequenas produções vindas de diferentes
fazendas, colhidas em condições excepcionais. Há dois anos, capitalizou a
empresa admitindo um grupo de investidores e concentrou sua atuação na garantia
da qualidade e na distribuição para as lojas da rede que já passam de uma
dezena e chegaram aos principais aeroportos brasileiros.
Embora o crescimento
pareça inevitável para quem quer se manter no topo de qualquer atividade
comercial, a carioca radicada em São Paulo Isabela Raposeiras tem feito um barulho
danado com apenas uma loja do seu Coffee Lab, na Vila Madalena. Ali funciona uma
cafeteria com micro-torrefação e espaço para cursos que ensinam desde como preparar
café corretamente em casa até segredos da torra para profissionais. Com uma coleção
de prêmios e menções internacionais, seu nome ecoa pelo planeta Café, um universo
paralelo que permeia o globo e conecta Coffee Lovers, Coffee Geeks, Hipsters e qualquer
outra tentativa efêmera de classificar os aficionados pela bebida.
Isabela Raposeiras
aproximou seus clientes e alunos de nomes escandinavos que fazem parte das suas
referências quando se fala em high-end
coffees. Um deles, o torrefador norueguês Tim Wendelboe, esteve em São
Paulo recentemente para uma sessão de cupping, o ritual de provas onde se pode fazer
sucções ruidosas sem ser visto como mal educado. A degustação aconteceu no
estúdio da FAF, Fazenda Ambiental Fortaleza, em São Paulo, onde o produtor
Felipe Croce apresentou pouco mais de uma dezena de variedades para a
apreciação de Wendelboe, que é seu cliente. Aos 35 anos, o norueguês já tem três
livros publicados e títulos de campeão mundial de baristas em 2004 e de
degustadores em 2005. As amostras sorvidas em pequenas colheres suscitaram
observações que fariam um enófilo se sentir intimidado. São aromas florais, cítricos,
químicos, láticos, que entre centenas de outros, têm relação com o terreno, a
variedade e o processo de secagem. Tim fez anotações no seu tablet, enalteceu
alguns exemplares, solicitou amostras, e não deixou de criticar impiedosamente
a qualidade da água utilizada, substituída pelo anfitrião por outra mais leve nas
provas seguintes. Na sua cafeteria em
Oslo, ou nos lugares hypados de Tokyo ou Nova York que servem seus cafés, pode-se
apreciar suas criações, muitas vezes originárias de um terroir específico. E a água conta muito. Isabella Raposeiras
costuma elogiar a água da Noruega. O chef dinamarquês René Redzepi, serve os
cafés de Wendelboe no seu restaurante Noma, eleito quatro vezes o melhor do
mundo pela revista inglesa Restaurant.
Apesar desse aval
espetacular com potencial para dogmatizar um tipo de gosto como ideal, o perfil
de torra conhecido como nórdico não é uma unanimidade. Alguns críticos
consideram que a matéria prima é sub-torrada, o que gera acidez exagerada no
paladar. Felipe Croce, por sua vez, diz que não existe um estilo melhor que o
outro em se tratando de torra
de cafés de alta qualidade. Além de Tim Wendelboe, ele vende para torrefadores
de ponta como Blue Bottle, de Oakland, Califórnia, e Coutume, de Paris, que produzem
resultados totalmente diferentes a partir do mesmo grão. Cada um define suas
preferências pessoais e tenta passar para a bebida a seu modo. Criado em
Chicago, nos EUA, onde viveu quase duas décadas, ele está à frente de um
negócio de cinco gerações, localizado em Mococa, São Paulo. Com apenas 27 anos,
é responsável pela presença de seus cafés em quase trinta países.
Em São Paulo, aos poucos
surgem novos empreendimentos, geralmente tocados por jovens egressos do Coffee
Lab, Suplicy, Santo Grão e Octavio Café, principais provedores desse mercado.
Um deles é o Sofá Café que, com apenas dois anos, já está entre os três
melhores da cidade. Recentemente, o engenheiro florestal Diego Gonzales, proprietário
da casa, surpreendeu os competidores com a abertura de uma unidade em Boston,
nos EUA, além das três que já tem por aqui. Apesar disso, para uma cidade que
tem o café como sinônimo de sua história, a nova onda ainda é discreta em
relação aos grandes centros, como Nova York, Londres e Tóquio. Até Paris, que
até pouco tempo atrás era criticada por servir cafés indecentes justamente nos
locais que eles inventaram e batizaram de Cafés, concentra hoje uma boa
quantidade de jovens torrefadores. A bebida preferida de Honoré de Balzac vive
o seu renascimento no século XXI.
Em Roma, no Sant’Eustachio
Il Caffè, uma instituição quase centenária situada entre o Pantheon e a Piazza
Navona, pode-se provar blends da variedade arábica vindos do Brasil e da
América Central. O proprietário Roberto Ricci reforça o fato de que o crescimento
mundial da Starbucks estimulou os donos de cafeterias a melhorar a qualidade dos
produtos e do atendimento para enfrentar essa forte concorrência. Ainda assim,
afirma que é preciso respeitar a cultura local. Para ele, o amargor que muitas
vezes é criticado nos tradicionais espressos
precisa apenas ser equilibrado, pois faz parte do paladar deles. O Clássico ristretto, que eles enchem de açúcar, é tão
italiano quanto uma Ferrari ou um filme de Fellini.
Se a Starbucks tirou
os proprietários de cafeterias da acomodação, a Nespresso fez sua parte junto aos
consumidores quando apresentou uma solução prática e visualmente limpa, conferindo
sofisticação ao ato de preparar e oferecer uma gama variada de café em casa. Recentemente
em Belo Horizonte, na Semana Internacional do Café, o especialista belga que
vive em Barcelona, Kim Ossenblok, conhecido mundialmente por seu blog Barista Kim,
palestrou para um auditório lotado e respondeu perguntas de jovens
empreendedores interessados em surfar a última onda cafeeira.
O engenheiro químico e coffee hunter Ensei Neto, que já
fez parte do comitê de normas técnicas da SCAA, (Specialty Coffee Association of America), acredita que ainda veremos nossos melhores grãos
ficando mais por aqui. Embora lentamente, ele acha que estamos caminhando pra reverter
essa equação atual. Seus cursos recebem profissionais do mundo todo envolvidos
com café que querem se enquadrar em novos patamares de qualidade. E sua voz é a
voz da maioria dos militantes dessa revolução cafeeira. É preciso questionar
algumas convicções e desmontar mitos como o de que o café amargo é forte, o
forte é bom e assim por diante. Não é fácil, é cultural e, sobretudo,
emocional, já que ao longo da vida construímos memórias gustativas e
olfativas que nos remetem a sensações de bem estar, e nos apegamos a elas.
P.P.
Valor Econômico - 2014
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